Por que o Karate-dō não é “Jutsu”?

INTRODUÇÃO

Nos dias de hoje tem surgido um grande esforço por parte dos profissionais do Karate em aproximar sua prática de algo dito mais “realista”. Este esforço se origina principalmente no desejo de distanciar tal prática, qualificada como “marcial”, dos jogos esportivos modernos (que visam uma aceitação olímpica) e, segundo esta avaliação, desconectados da origem da arte.

Dessa forma, professores tem procurado um retorno ao tradicionalismo – entendido aqui como uma prática mais marcial –, associando termos como “raiz”, “budō” ou “jutsu” na nomenclatura e divulgação de seu ensino.

Neste artigo veremos porque o termo “Karate-jutsu” é o mais inadequado à luz da história, independente do valor propagandístico que encerre.

O QUE É “JUTSU”?

Jutsu (術) pode ser traduzido como técnica, habilidade.
Em artes marciais esse termo precisa estar associado a um radical para se obter o sentido que o define, como por exemplo Jūjutsu (luta desarmada), Kenjutsu (técnica da espada), Kyūjutsu (técnica do arco e flecha) e um longo etc.

A associação do termo “jutsu” com “Karate” significaria algo como “técnica das mãos vazias” em contraposição ao “Dō”, entendido como “caminho”, que tem o significado mais filosófico “caminho das mãos vazias”. Jutsu estaria mais associado à luta sem um fim filosófico, simplesmente como defesa própria e eliminação de um adversário.

O fato é que historicamente pode-se dizer que o jutsu extinguiu-se com a casta dos samurai [1] durante a Restauração Meiji (1868) [2].
Após a abertura do Japão o Governo Meiji reestruturou sua sociedade, procurando preservar suas artes marciais. Essas artes marciais passaram a ser conhecidas como Gendai Budō (artes marciais modernas), onde o Budō (lit. “caminho marcial”) fazia contraposição com o Bujutsu (lit. “técnica marcial”) [3].

Uma das principais medidas para a preservação dos Gendai Budō foi a criação em 1895 do órgão governamental Dai Nippon Butokukai (“Grande Casa das Excelências Marciais do Japão”) que passou a catalogar suas disciplinas marciais e reformula-las para a nova época que o Japão vivia. Assim tudo que era “jutsu” passou a ser “Dō”: Jūdō (Jūjutsu), Kyūdō (Kyūjutsu), Kendō (Kenjutsu), Najinatadō (Najinatajustu), etc.
O grande artífice dessa reformulação foi o honorável mestre Jigorō Kanō (1860-1938).

Por esta época no Japão o Tōde era desconhecido e não havia sido apresentado oficialmente aos japoneses, o que ocorreria somente duas décadas depois.

AS JUSTIFICATIVAS PARA O EMPREGO DO “JUTSU” NO KARATE

Quem defende a tese que o termo “jutsu” já fazia parte do Karate procura alguma explicação na história, criando então um sofisma [4].

É estabelecido assim duas principais teses como justificativas.
A primeira é a invasão de Okinawa pelo feudo Satsuma, ocorrida em 1609; e a segunda é o emprego do termo “jutsu” por Gichin Funakoshi (1868-1957) na reedição (1925) do seu primeiro livro intitulado naquela ocasião como “Rentan Goshin Tōde-jutsu”.

Respaldados principalmente nessas duas ocorrências históricas verdadeiras criaram-se narrativas inconsistentes para justificar a utilização do “jutsu” como um elemento primitivo na elaboração do Tōde [5].

Por que essas teses são sofismas? Explicarei de forma bem objetiva.

A TESE DA INVASÃO SATSUMA

Em 1609 o feudo Satsuma [6] invadiu o Reino de Ryūkyū, hoje conhecido como Prefeitura de Okinawa. A partir da invasão, os samurai de Satsuma permaneceram no reino até sua anexação definitiva pelo Japão em 1879.
A partir deste ponto criou-se a narrativa de que as artes marciais japonesas (jutsu) do feudo Satsuma se anexaram ao desenvolvimento do Tōde.

Sabemos que o clã samurai do feudo Satsuma desenvolveu um estilo peculiar de Kenjutsu denominado Jigen-ryū (“estilo da realidade revelada”) que se baseia na eficiência do primeiro golpe para neutralizar o adversário, fato que os tornava temíveis [7]. Historicamente há o registro de alguns importantes nomes do Tōde que o praticaram, sendo o primeiro deles um Shizoku Uēkata (nobre) de nome Haebaru no ano de 1695. O próprio Sokōn Matsumura (1809-1899), importantíssimo na história do Karate, foi um dos que o praticou.

Esta tese da invasão Satsuma não se sustenta para defender o suposto emprego do termo “jutsu” na arte do Tōde justamente pela aberta resistência que existia à ocupação japonesa, ocupação esta que nesse período era passiva [8].
O Reino de Ryūkyū era muito próximo da China e sua cultura. Suas primeiras relações diplomáticas remontam ao ano de 1372 e já a partir de 1392 foi estabelecida uma vila chinesa no reino uchinānchu [9], na vila Kumemura, que perdurou até o fim da independência da ilha em 1879.
Portanto, sendo o Tōde uma arte tão íntima do Reino de Ryūkyū seria inconcebível acreditar que o termo “jutsu”, tão expressivo da cultura nipônica, fosse tacitamente absorvido pelos uchinānchu.

O mestre Kanga Sakugawa (1733-1815) é notório por ter ido à China treinar o Quán-fǎ por volta de 1756. Ao retornar, em 1762, passou a ser chamado de Kanga ‘Tōde’ Sakugawa. Essa tradição prova a inconsistência do “jutsu” fazer parte da nomenclatura da arte, já que até Sakugawa – após 140 anos de dominação samuraica – a arte ainda se chamava simplesmente “Te”, ganhando o sufixo Tō justamente pelo retorno de Sakugawa da China (Tōde significa “mão da China” ou “mãos chinesas”).

Acrescentamos que Hōan Sōken (1889-1982), discípulo de Nabe Matsumura (1860-1930) que era neto e aluno direto do mestre Sokōn Matsumura, registrou que o Tōde ensinado por Sōkon Matsumura era chamado de Uchinā Sui-dī (o mesmo que Okinawa Shuri-te, em japonês), não havendo referência alguma ao termo “jutsu”.

Portanto conclui-se: a invasão Satsuma não contribuiu para a inclusão do termo “jutsu” ao Tōde, justamente por não ser um termo simpático à cultura uchinānchu e não haver respaldo dessa tese na história dos mestres precursores antigos que viveram sob o domínio Satsuma.

O USO DO “JUTSU” POR GICHIN FUNAKOSHI

É bastante utilizado o fato histórico da nomenclatura da segunda edição do primeiro livro de Gichin Funakoshi, “Rentan Goshin Tōde-jutsu”, publicado em 1925, para procurar fundamentar a possível originalidade do termo “Karate-jutsu”. Mas veremos que é apenas um sofisma fácil de neutralizar à luz da verdade histórica.

Inicialmente cabe dizer que o mestre Gichin Funakoshi não tinha autoridade para falar em nome de todos os mestres de Okinawa. Ele foi mandado para o Japão nas duas demonstrações do Tōde aos japoneses (em 1917 e 1922) por ser uma pessoa muito culta, fluente em japonês e simpático à política japonesa, além de mestre da arte. Porém, não era nem o maior, nem o melhor mestre de Tōde de Okinawa.

A importância dado ao “jutsu” no título da obra “Rentan Goshin Tōde-jutsu”, reedição de 1925, se desvanece pelo próprio ano da publicação em questão. Já se passavam desde a Restauração Meiji, 57 anos que o jutsu cedera lugar ao Dō. Ou seja, “jutsu” se achava completamente anacrônico e incoerente com aquele momento político do Japão. Uma prova disso é que na primeira edição deste mesmo livro datado de 1922 e denominado “Ryūkyū Kenpō Tōde” o termo “jutsu” não era empregado e a nomenclatura original ainda fazia referência ao Quán-fǎ chinês (Kenpō em japonês), algo extremamente “anti-japonês”.

Mas Gichin Funakoshi tinha uma motivação para empregar essa nomenclatura bizarra 10 em 1925. Pretendia tornar o Tōde “mais japonês” aos olhos do Dai Nippon Butokukai que precisava chancelar a arte uchinānchu como um Gendai Budō. Isto é tanto verossímil que seu exemplo foi seguido por outros dois importantes mestres de Okinawa que se achavam no Japão: Chōki Motobu (1870-1944) e Kenwa Mabuni (1889-1952). Motobu publicou seu primeiro livro em 1926, chamando-o de “Okinawa Kenpō Tōde-jutsu Kumite-hen” e Mabuni fez o mesmo em 1933, publicando seu “Tōde-jutsu”.

Ainda assim, esse anacronismo foi dissipado em 1929 quando o Tōde finalmente deu lugar a definitiva denominação Karate-dō, pondo fim ao processo de assimilação japonesa da arte. De fato, o Dai Nippon Butokukai reconheceu o Karate-dō como um Gendai Budō em 1935. Não obstante, em Okinawa as inovações do Japão só foram aceitas em 1936.

Portanto conclui-se: o emprego do “jutsu” nas obras de Funakoshi (1925), Motobu (1926) e Mabuni (1933) foram arranjos anacrônicos para buscar simpatia e aceitação dos japoneses. São iniciativas políticas particulares e isoladas de três mestres em total descompasso com o pensamento marcial de Okinawa. O termo “jutsu” é anacrônico porque deixou de ser usado após a Restauração Meiji no distante ano de 1868.

CONCLUSÃO

Refutamos aqui o emprego do “jutsu” como denominação historicamente válida para o Karate-dō baseado em duas premissas históricas: a franca animosidade política entre Okinawa reino e o Japão; e o fim da “era jutsu” com a modernização do Japão após a Restauração Meiji.

É concebível e até aceitável que profissionais do Karate desejem um retorno às origens da arte. O grande problema são os equívocos tomados ao adotarem essa nobre atitude. Talvez o maior deles seja que na busca pela origem o interessado mantenha-se dentro de um único estilo. Lembremos que os estilos de Karate-dō são um evento moderníssimo (primeiros registros datados de 1933) e é impossível falar em “origens da arte” mantendo-se fiel a um estilo. Isso porque antes da difusão do Tōde no Japão existiam apenas tradições denominadas Shōrin e Shōrei e ambas não isolavam seus praticantes.

Antes de encerrar é necessário falar algo sobre o “Karate Budō”, algo passível da tradução de “o caminho marcial das mãos vazias”.
Devemos dizer que à luz da história pós-Restauração Meiji este termo é infinitamente mais coerente que o tal “Karate-jutsu”, já que Budō é um termo aceito e largamente empregado naquele período e que, à época, recebeu o exótico Tōde daquela Prefeitura com “cara de China”. Ou seja, o Tōde foi absorvido pelo conceito do Budō japonês e passou a ser, como vimos, um Gendai Budō.
Logo, a aceitação do Karate como um Budō pelo Dai Nippon Butokukai em 1935 torna coerente a expressão “Karate Budō”, no entanto, é bom lembrar que jamais “Karate Budō” estará vinculado à origem do Tōde, já que esta origem é chinesa e não japonesa.

Eros José Sanches,
É membro da Academia de Letras do Vale do Iguaçu (ALVI) e autor do livro “Ikken Hissatsu, As Origens do Karate-Dō”.

Este artigo foi extraído e adaptado da obra “Ikken Hissatsu, As Origens do Karate-Dō”.

NOTAS

[1] Este artigo foi escrito considerando que no japonês não há plural, pelo que se empregam expressões como “os uchinānchu”, “os samurai”, etc.
[2] A Restauração Meiji foi o processo de derrubada do xogunato (fim do período feudal) e restabelecimento do poder para a família imperial japonesa. Esse processo resultou na abertura política do Japão e no seu consequente desenvolvimento e modernização econômica a partir do final do século XIX.
[3] É interessante verificar que a primeira citação do termo Bushidō (“caminho do guerreiro”) vem da obra Kōyō Gunkan, de 1616, durante o Período Edo (1603-1868), o último período feudal e de prolongada paz que levou a classe guerreira a dedicar-se à filosofia justamente por não haver guerras com a intensidade dos períodos anteriores.
[4] Dentro do estudo da lógica sofisma é o argumento ou raciocínio que produz uma ilusão da verdade e, embora simule um acordo com as regras da lógica, apresenta uma estrutura interna inconsistente, incorreta e enganosa.
[5] Tōde é a designação primitiva do Karate-dō, porém a historiografia admite outras como Te ou Tī.
[6] O samurai Matsudaira Iehisa (Tadatsuni Shimazu, 1576-1638) foi designado pelo Shōgun Ieyasu Tokugawa (1543-1616) como o “senhor das doze ilhas do sul”. Este título honorífico o tornava Daymiō (senhor de feudos) da província de Satsuma na ilha japonesa de Kyūshū (na atual Prefeitura de Kagoshima) e incluía ainda o Reino de Ryūkyū, que embora independente era desprezado em sua soberania pelos japoneses.
[7] Podemos dizer que este conceito, chamado Ichigeki Hissatsu (“um golpe certamente mata”), deu origem à adaptação empregada no Tōde do Ikken Hissatsu (“um punho certamente mata”). Não obstante, observem que esta foi uma apropriação conceitual (vide meu artigo nº 4 de 22 de fevereiro de 2022, intitulado “A Origem do Termo Ikken Hissatsu”, por sua vez extraído do Capítulo X do meu livro “Ikken Hissatsu, as Origens do Karate-dō”).
[8] Os japoneses ocuparam a ilha com poucos efetivos e algumas famílias de colonos, preservando a independência da ilha como reino e não interferindo ostensivamente em sua política exterior.
[9] Uchinānchu refere-se aos cidadãos de Uchinā (Okinawa).
[10] A nomenclatura é dita “bizarra” porque encerra dois conceitos antagônicos politicamente: o Tōde, um termo chinês, ao “jutsu” que é essencialmente japonês, lembrando que ambos os países (China e Japão) estavam em franca animosidade àquela época.

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